Comportamento

Chic Pele ou Chic Bege?

Por
Ivone Sousa

7/18/2025

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Os pequenos rituais de cuidado que resistem, mesmo quando tudo parece ruir ao redor (Foto: Shutterstock)

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Um relato íntimo sobre vaidade, cuidado e julgamento — e sobre o que permanece quando tudo o mais se desfaz

Aretuza é amiga da minha mãe. Empreendedora, sempre muito educada e simpática. Sou amiga dos filhos dela e, às vezes, ia para a casa dela num domingo à tarde para brincar de carimba, mas o local onde sempre nos víamos era na igreja. Além de todas essas características, dona Arê é muito vaidosa: cabelo sempre impecável, num tom de preto quase azulado, perfumada e unhas sempre feitas. Uma rotina que ela cumpria religiosamente toda semana.

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A vaidade como gesto de presença: discreta, digna, às vezes quase imperceptível, mas cheia de significado (Foto: Shutterstock)

Há uns três anos, o marido dela descobriu um câncer e, no ano passado, a doença já estava em estágio avançado, o que o debilitou bastante. E a dona Arê? Continuou sua rotina de cuidados normalmente.

— Olha lá a dona Arê... o marido morrendo e ela inventando de ir ao salão arrumar o cabelo... — comentou uma vizinha.
— A dona Arê sempre fez isso. Nunca deixou de se cuidar, e isso não é de hoje. Toda sexta ou sábado, ela faz o cabelo e a unha — corrigiu outra vizinha, mais próxima a ela.

Me transportei para minha infância com uma mãe cheia de cosméticos, roupas e acessórios que eu admirava: sabonete de limpeza facial, perfumes, batons, Renew (um clássico antienvelhecimento da Avon), pó compacto, terninhos, uma clutch com paetês que eu tenho até hoje e ainda uso.

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A penteadeira como relicário de quem fomos, e do que, talvez, ainda somos (Foto: Shutterstock)

Com o tempo, ela foi deixando de comprar e usar itens que destoassem do “comum”. Muitos ficaram na penteadeira, vencidos, sem uso, e outros ela me deu.
— Estou velha demais pra usar calça jeans — disse um dia.

Isso aconteceu conforme a idade ia chegando e o Parkinson do meu pai avançava. Ela também parou de ir à manicure aos sábados. Parou de usar batom. Simplesmente parou.

Um dia especial estava chegando: a crisma do meu irmão na cidade. Nessa época, nunca deixávamos meu pai sozinho, e eu fiquei com ele. Antes de sair, mãe viu o batom, provavelmente vencido há uns cinco anos, e resolveu usar. Uma cor totalmente fora da tendência, mas era o único disponível. Nas fotos do evento, é até estranho vê-la com batom, mas foi uma volta a um tempo não muito distante. Essa vaidade durou apenas um dia.

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Numa das minhas visitas ao Maranhão (eu sempre fazia surpresa), encontrei-a com o esmalte Chic Pele. Para quem só usava o Renda esporadicamente, achei uma mudança significativa. Ela disse que achou muito chamativo.
Chamativo. Sim, chamativo — um nude totalmente discreto.

Três dias depois, eu estava com minha mãe no hospital. Antes mesmo de começarem os sintomas mais intensos da pancreatite aguda, ela já previa o pior.
No auge das dores, mesmo depois de muitas doses de morfina, ela me disse:
— Ivone, quando eu morrer, tira esse esmalte bem direitinho, porque eu não gostei.
— Ai, mãe... não diz isso... — eu não queria aceitar que minha mãe estava morrendo.
Foi um momento nosso.

Algumas horas depois dessa conversa, 40 minutos de reanimação e massagem cardíaca, ela se foi. Eu tinha um compromisso com ela, com sua memória. Por mais que o Chic Pele significasse o pouco de vaidade que ainda lhe restava, ela não queria deixar transparecer. Aquele Chic Pele representava o quanto ela se preocupava com a opinião alheia, o quanto a julgariam por se cuidar enquanto o marido estava moribundo. Mas eu também entendo que isso já fazia parte da personalidade dela — ela não conseguia agir de outra maneira.

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Entre o silêncio e a memória, o peso invisível do julgamento molda o que deixamos transparecer (Foto: Shutterstock)

É impressionante como as pessoas ao nosso redor influenciam nossos comportamentos. Minha mãe e dona Arê são exemplos dessa dualidade: a força de continuar e a hesitação causada pelo medo do que os outros poderiam pensar. Elas eram de outro tempo, de outra criação, onde a dedicação ao marido era uma virtude inquestionável. Talvez, para dona Aretuza, esses momentos de cuidado consigo mesma fossem sua válvula de escape. Já minha mãe, influenciada pelo medo do julgamento alheio, abriu mão de sua vaidade.

O nome fictício de Aretuza foi escolhido porque me lembrava da personagem do livro Reunião de Família, de Lya Luft, e Alice seria a minha mãe. Luft evidencia as características femininas e, com isso, a dicotomia mostra como elas representam influências e formas de vida distintas. Essa antítese mostra como somos moldadas pelo ambiente em que vivemos, pela nossa criação e pelas pessoas com quem convivemos.

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Atravessei a rua, comprei acetona e algodão. Eu nem tinha cabeça para isso, mas foi seu último pedido, e eu sabia que seu medo era que falassem mal ou que sua vaidade fosse mal interpretada. Então, com as unhas curtas, limpas, mas sem esmalte, ela se foi.

No fim, ela me ensinou que a verdadeira vaidade não está na aparência, mas na dignidade e na força de enfrentar cada dia. E é essa lição que levarei comigo para sempre.