Com mais de duas décadas atuando como especialista em farmácia, guiando a população em cuidados diários, acompanhei de perto evoluções nas recomendações de saúde, como a queda no limite aceitável de colesterol total de 290 mg/dL para 190 mg/dL e a expansão do uso de estatinas. No entanto, a mortalidade por infarto não recuou tanto quanto se poderia esperar, a obesidade avança, especialmente entre mulheres, e os diagnósticos de câncer multiplicam-se. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.
Oportunidade perdida
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) promove tratamento, com hospitais, consultas e remédios gratuitos. Sucessos como a campanha de vacinação contra a poliomielite, que quase eliminou a doença, demonstram o potencial estatal em ações pontuais. Porém, o Estado prioriza o combate a doenças já instaladas, em vez de investir na promoção da saúde por meio da educação cotidiana.
Doenças crônicas como o diabetes tipo 2, a hipertensão e os problemas cardiovasculares, que respondem por cerca de 60% das mortes no país, segundo o Ministério da Saúde, derivam predominantemente de hábitos evitáveis: dietas carregadas de ultraprocessados, sedentarismo e vícios como o tabagismo e jogos on-line.
Aqui reside a falha: o Estado poderia liderar campanhas massivas de orientação básica, ensinando a população a lavar as mãos com sabão antes das refeições e após o uso do banheiro, prática que corta infecções pela raiz. Da mesma forma, promover o consumo de alimentos que reduzem a glicose, como batata-doce ou inhame, ajudaria a prevenir picos de açúcar no sangue e o avanço do diabetes. E que tal destacar as gorduras boas, como as de carnes magras, sementes ou óleo de coco, que nutrem o coração e o cérebro sem o estigma das gorduras “ruins”?
Essas mensagens simples, veiculadas em escolas, TVs e redes sociais, poderiam transformar a saúde pública, reduzindo a sobrecarga no SUS. Em vez disso, o foco permanece no medicamento, não na prevenção.
Prevenir é o melhor remédio

Exercícios ao ar livre aliados à exposição solar fortalecem ossos, imunidade e equilíbrio emocional (Foto: Envato)
Um exemplo significativo dessa abordagem enviesada é o manejo do colesterol e a subestimação da vitamina D. Ao iniciar minha carreira, em 2002, o colesterol total máximo tolerável era 290 mg/dL; hoje, com a meta em 190 mg/dL, as estatinas que bloqueiam sua produção no fígado tornaram-se extremamente comuns. Elas beneficiam grupos de alto risco, mas não explicam por que as mortes por infarto persistem, possivelmente devido à obesidade e ao sedentarismo aliados à alimentação ruim. Globalmente, em 2019, as doenças cardiovasculares ceifaram 17,9 milhões de vidas.
O colesterol, vilanizado, é na verdade vital para sintetizar hormônios como testosterona, estrogênio e cortisol, essenciais para o equilíbrio hormonal. Níveis excessivamente baixos, induzidos por medicamentos, podem agravar quedas na testosterona masculina ou desregulações femininas, elevando riscos de câncer — que registrou 627 mil casos no Brasil em 2022.
Paralelamente, a vitamina D, obtida simplesmente com exposição ao sol (15 a 20 minutos diários), fortalece ossos, imunidade e humor, mas é negligenciada em campanhas estatais — justo no Brasil, um país tropical com um litoral extenso. O Estado poderia integrar isso à promoção de saúde: orientar sobre caminhadas ao ar livre para captar sol, aliadas ao consumo de gorduras boas, em vez de prescrever medicamentos caros. Essa educação básica equilibraria o colesterol naturalmente, evitando dependência farmacêutica e promovendo bem-estar integral.
Saneamento e higiene: o básico que o Estado pode e deve garantir

Higiene básica e acesso à água tratada ainda são desafios centrais para a saúde pública brasileira (Foto: Envato)
O Estado tem responsabilidade direta no saneamento, mas falha em unir infraestrutura a educação comportamental. A ausência de água potável e esgoto tratado fomenta epidemias de diarreia, hepatite A, leptospirose e parasitoses como a esquistossomose.
Segundo a OMS, cerca de 829 mil mortes anuais por diarreia no mundo estão ligadas à água contaminada e à falta de higiene, um número alarmante. No Brasil, isso se reflete em aproximadamente 11,5 mil óbitos por ano por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado, superando em magnitude os 1,4 mil óbitos por COVID-19 em 2024. O total acumulado da pandemia no país (2020 a setembro de 2025) chegou a cerca de 715,8 mil mortes. Pouco se destaca que a falta de higiene básica mata mais pessoas por ano do que o vírus em um período recente.
O Instituto Trata Brasil estima que cerca de 32 milhões de brasileiros carecem de acesso à água potável e aproximadamente 90 milhões vivem sem coleta de esgoto adequada, perpetuando um ciclo de doenças.
Como orientadora em saúde, vejo diariamente casos evitáveis: pacientes com diarreia recorrente que bastaria resolver com mãos lavadas ou alimentos bem higienizados. O Estado deve lançar programas que ensinem a escovar dentes, lavar frutas e manter casas limpas, integrando isso à promoção de saúde. De nada adianta se vangloriar em períodos eleitorais, orgulhando-se de milhões de atendimentos pelo SUS, quando grande parte deles poderia ter sido evitada.
A responsabilidade individual impulsionada pelo Estado
Minha experiência de anos educando sobre nutrição, suplementação, emagrecimento e movimento físico prova que o básico previne a maioria das doenças. Oriento, em atendimentos ou cursos, incontáveis pessoas a trocar ultraprocessados por opções naturais que controlam a glicose, como o inhame, ou a incorporar gorduras benéficas do óleo de coco em receitas simples.
Para mulheres acima dos 40 anos, com 29,5% obesas segundo dados recentes, sugiro danças ou caminhadas, que captam sol e combatem o sedentarismo. Esses hábitos não só evitam diabetes e hipertensão, mas aliviam a ansiedade, promovendo o bem-estar mental descrito pela OMS.
O Estado facilita com vacinas e exames, mas a adesão depende de informação. Em comunidades carentes, onde indico feijão-verde ou milho como aliados acessíveis, pequenas orientações geram impactos profundos. Cabe ao governo capacitar, não apenas tratar.
O SUS, atolado em filas e escassez de profissionais, gastaria menos tratando se investisse em campanhas de conscientização. Recursos limitados? Priorize o básico: saneamento aliado a orientação transforma mais do que hospitais lotados.
O governo deve pivotar: de tratador a educador, incentivando escolhas que constroem vitalidade. Saúde não é remédio; é hábito simples, e o Estado tem o dever de ensinar isso a todos.


