“O objetivo da guerra é a paz”, escreveu Aristóteles. Uma ideia paradoxal que atravessa séculos de história, marcada por disputas territoriais, jogos de poder e transformações geopolíticas profundas. Desde as antigas civilizações, guerras foram travadas por expansão, dominação ou, em alguns casos, sob a justificativa de proteger povos. Seja por força divina ou pela ambição de líderes excepcionais, as fronteiras do mundo foram redesenhadas com frequência.
Hoje, a guerra não desapareceu, apenas mudou de forma. O campo de batalha se sofisticou, os armamentos evoluíram, e os peões continuam sendo os mesmos: o povo. A partir da Guerra Fria, a conquista deixou de depender exclusivamente da força bruta e passou a operar por meios invisíveis, muitas vezes legais, mas nem sempre legítimos. É nesse contexto que surge o conceito de lawfare.
Inspirada na lógica do xadrez, a metáfora ajuda a entender o tabuleiro contemporâneo:
- O Poder Judiciário assume o papel da torre;
- A mídia e as redes sociais, como cavalos, avançam em direções imprevisíveis;
- A religião ainda exerce influência, como os bispos;
- O Poder Legislativo, simbolizado pela rainha, sustenta ou desestabiliza o rei, aqui representado por presidentes e primeiros-ministros.
- E o povo, ao lado dos empresários, segue na linha de frente como peões, vulneráveis, sacrificáveis e com pouca margem de ação.

O tabuleiro da geopolítica contemporânea se assemelha a um jogo de xadrez: as peças se movem conforme os interesses de quem detém o poder (Foto: Pixabay)
Nesse jogo, o verdadeiro poder está nas mãos do dono do tabuleiro, a elite que muda as regras conforme seus interesses. Quando a disputa desagrada, as peças podem ser derrubadas, as comunicações cortadas, os comandos substituídos. É nesse cenário de controle sutil e manipulação estratégica que o lawfare se desenvolve.
O termo, que une law (direito) e warfare (guerra), define o uso indevido de ferramentas jurídicas para fins de perseguição política, deslegitimação de adversários e manipulação da opinião pública. O filósofo Maquiavel já apontava a conexão intrínseca entre a guerra e o exercício do poder, destacando que o conflito nem sempre é físico e pode ser simbólico e institucional. No século XXI, o direito tornou-se campo privilegiado dessa nova forma de combate.
Casos emblemáticos ajudam a ilustrar esse fenômeno. No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 marcaram um ponto de inflexão. Investigações, delações premiadas e ações judiciais se tornaram peças-chave para enfraquecer lideranças políticas, muitas vezes antes mesmo de qualquer julgamento. A cobertura midiática reforçou narrativas de condenação antecipada, minando reputações e alterando o jogo eleitoral. Como apontam estudos sobre o tema, o lawfare frequentemente se inicia na imprensa, ganha corpo nas redes sociais e, por fim, legitima-se nos tribunais, invertendo a lógica do devido processo legal.

Quando o Direito deixa de ser instrumento de justiça e passa a servir como arma, o Estado Democrático entra em xeque (Foto: Adobe Stock)
Outro mecanismo recorrente é a judicialização da política: partidos recorrem ao Judiciário para derrubar legislações recém-aprovadas, mesmo que tenham sido debatidas e votadas por representantes eleitos. Há, também, casos em que o Judiciário assume funções do Legislativo, criando interpretações normativas que, na prática, equivalem à produção de novas leis. Não se trata de coincidência, mas de desequilíbrio entre os poderes.
A isso se soma a crescente polarização política, que alimenta uma guerra simbólica travada nos discursos, nas decisões judiciais e nas manchetes. O fenômeno da cismogênese, conceito antropológico que descreve a intensificação de conflitos por meio da repetição de comportamentos opostos, ajuda a explicar como essa divisão se perpetua. A sociedade se fragmenta, e os peões, como no xadrez, se movem conforme o interesse de forças maiores.
Nesse contexto, torna-se urgente o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Advogados, juízes, legisladores e a sociedade civil precisam estar atentos às consequências éticas e jurídicas da instrumentalização da justiça. É necessário dissociar a legalidade do uso político do direito e promover um debate público que valorize a transparência, a pluralidade e a justiça real.
A superação do lawfare exige coragem. Coragem para enfrentar estruturas de poder opacas, para defender princípios constitucionais, para garantir segurança jurídica e liberdade de expressão para todos. Afinal, como escreveu Miguel de Cervantes, “a guerra, assim como é madrasta dos covardes, é mãe dos corajosos”. E neste xadrez, ainda há tempo para virar o jogo.